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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ali

Não me dou bem com sentimentos. Na verdade nem sei para que existo. Da janela é mais fácil saber. Conhecer.

O dia deve estar bonito. Não sei. Também sou terrível com conceitos. Mas aí, nessa sala entre a luz e a penumbra existem alguns em diálogo, do qual quero e preciso fugir.

Meu Deus, seu primeiro dia na escola! Eu deveria ter aquela conversa com ele. Ou pelo menos ter dito algumas frases desconexas enquanto o ajudaria a calçar os sapatos. Ou algo assim. Mas ele é um rapazinho e faz isso sozinho. Eu nem me atrevi.

Ai, aquele chapéu! Eles parecem tão homenzinhos desfilando aquilo em suas cabeças. Parecem ser grandes para, entre outras coisas, esconder a timidez ou a falta dela. E ainda nem me passa pela cabeça interpretar como ele se comportaria com aquele adorno.

Tudo é novo. Não apenas esse dia que inaugura uma experiência, mas ela fez questão de quase lamber cada detalhe, desde a roupa íntima até aquela fitinha azul que ela mesma comprou. Disse que era seu presente para dar sorte. Ele a abraçou e me olhou com expectativa. Eu, sem resposta emocional, apenas me levantei e saí. Da janela é tão mais fácil...

Ela, seguramente deve estar fazendo-lhe perguntas. Sei que essas são as companhias prediletas dele. Vive fazendo as mais perturbadoras perguntas. E também adora responder. Garoto esperto. Certamente conseguirá viver.

Tive medo de que certas indagações fossem feitas. De repente, ele me perguntaria qual era minha brincadeira favorita na escola. Ou se eu gostava de brincar. Ou se eu gostava de ir à escola. E também ainda não me passa pela cabeça se ele vai gostar.

Nem lhe perguntei se estava ansioso. Acordou cedo. Correu pelos corredores e abriu a janela com voracidade. Abriu seu baú e selecionou alguns brinquedos. Não sei por que. Acabou deixando todos espalhados. A peteca foi minha. Acho que é a única coisa que guardo da infância. Mas não sei como foi parar ali.

Acho que ele pensou em levá-los. Acho.

Ela é sempre tão boa com ele. Tão generosa comigo. Seguramente pôs uma maçã para que ele levasse de lanche. Se é que ele gosta de maçãs. Mas o penteou com tanto zelo que até eu parecia sentir a delicadeza de seus dedos me acariciando o couro cabeludo. Cheguei a fechar os olhos. Mas logo os abri. Tive medo de lembrar.

Daqui, creio, não dá para me ver. Acho que me sentiria covarde se ele me percebesse aqui. Saí tão sutilmente daquela sala que talvez ele ainda ache que eu esteja por ali.

Já sei: talvez ela lhe esteja provocando a memória. Outro dia soube que ele já tinha de cor os nomes de todos os países. E ainda sabia o que são estados e cidades.

Ou talvez ele tivesse perguntando se dói. Sobre o que conversavam ontem à noite eu não sei, mas quando eu passava pelo quarto de banho, o escutei perguntando se “aquilo doía”. Acho que era sobre ela, pois não respondeu e ficou calada. Como não me interessa, prefiro nem saber.

Mas ele é tão esperto! Tão independente que me põe em dúvida sobre qual é o meu papel. Se é que eu quero ter um. Ou devo.

Quando ela segurou a sua mão, levantou e saíram pela porta que eu havia deixado aberta para não fazer barulho, eu senti algo voando em meu estômago. Minha garganta deu um nó.

Me viro e o vejo partir.

Não vai chover. Que bom. Assim ele não tem que correr.

— Põe o chapéu! 

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